Criticado por usar fóssil ‘roubado’ do Brasil, estudo na Alemanha diz que dinossauro nordestino era caçador ágil
Comunidade internacional e cientistas brasileiros criticaram estudo com peça contrabandeada. Pesquisador alemão reconhece problema com origem do fóssil, mas diz não ter culpa. ‘Não somos profissionais do direito’, afirmou Marcos Schade .
Novos detalhes sobre um dinossauro que viveu no Nordeste do Brasil foram revelados por cientistas alemães e franceses. Eles analisaram um fóssil que está no acervo de um museu na Alemanha: uma tomografia do crânio do Irritator Challengeri permitiu que a equipe internacional afirmasse que o animal era um caçador mais rápido e mais versátil do que se imaginava anteriormente.
Mas a divulgação desta pesquisa também motivou um novo capítulo do debate sobre ética na ciência, já que a retirada de fósseis do Brasil é ilegal. O crânio deste exemplar foi contrabandeado nos anos 1990 e levado para o Museu Estadual de História Natural de Stuttgart.
No resumo abaixo, entenda em 8 itens as descobertas da pesquisa e a polêmica:
Estudo foi publicado em abril na revista científica ‘Palaeontologia Electronica’ e trata de um dinossauro da família dos espinossaurídeos;
Os cientistas concluíram que estruturas do crânio permitem dizer que esse espécime não se alimentava apenas de animais pequenos, mas também de outros maiores; e que ele tinha comportamento bastante ágil;
Pesquisa também indicou que ele era capaz de transitar com facilidade entre o ambiente aquático e o terrestre;
Fóssil do Irritator provavelmente foi encontrado na Bacia do Araripe, entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, conhecida por reunir fósseis de seres que viveram há 110 milhões de anos;
Ele foi contrabandeado para a Alemanha na década de 1990 e apresentado pelo Museu Estadual de História Natural de Stuttgart;
Desde 1942 existe um decreto-lei que determina que os fósseis encontrados no Brasil são propriedade do Estado;
O texto do estudo tinha uma ressalva considerada tímida sobre esse ponto: autores reconheceram o “estado possivelmente problemático” do fóssil e apresentaram uma desculpa que não elimina o descumprimento do decreto-lei;
Comunidade paleontóloga brasileira demonstrou indignação com os pesquisadores e com a revista científica, e cobrou a repatriação do fóssil, um processo lento e que exige intervenção do Itamaraty.
Irritator: não foi o primeiro
O contrabando de fósseis está longe de ser inédito ou mesmo uma coisa do passado. Mesmo hoje em dia há relatos de retirada de peças que podem valer mais de uma centena de milhares de dólares. O caso mais conhecido é o do fóssil Ubirajara Jubatus. Ele também foi levado para a Alemanha, em 1995, e está no Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe.
Só em julho do ano passado, dois anos depois de o Ministério Público Federal instaurar um inquérito para investigar a saída do fóssil do país, as autoridades alemãs consentiram em devolvê-lo para o Brasil. No entanto, isso ainda não foi feito e não há uma data oficial divulgada para a repatriação.
Juan Cisneros, paleontólogo da Universidade Federal do Piauí, explica que os fósseis são recursos, com importância histórica, cientifica e cultural.
“Ele poderia ter enriquecido a bagagem da nossa ciência, gerado turismo e movimentado a economia local”, avalia Juan Cisneros.
Irritator: do contrabando à fraude e ao nome
Não é por acaso que seu nome científico do Irritator Challengeri remete à palavra ‘irritante’. O relato conhecido é que, quando o fóssil foi contrabandeado, ele tinha a aparência de estar bastante completo e bem preservado. No entanto, depois de uma análise cuidadosa, parte das estruturas do fóssil se revelaram uma fraude.
Os contrabandistas reconstruíram partes faltantes do crânio para dar a impressão de que a peça estava mais íntegra, o que aumentaria o valor a ser pago por ela. Ao descobrirem a farsa, os cientistas se irritaram e assim o nome foi cunhado. Há ainda relatos de que a “irritação” teve relação com o trabalho delicado de remoção dos enxertos.
Ao g1, o principal autor da pesquisa Marcos Schade contou que um focinho alongado e uma crista acima dos olhos foram identificados como modelagem artificial quando o museu recebeu a peça. Ela já passou por diferentes limpezas, mas ainda foi possível encontrar traços de material enxertado mesmo durante esta pesquisa mais recente.
“De fato, a partir de nossos dados de tomografia computadorizada, ainda encontramos alguns pequenos corpos estranhos, em torno do meio do crânio que parecem não pertencer àquele lugar. Não parece improvável que, em tempos anteriores, o gesso tenha sido incluído no fóssil, mas não podemos estabelecer com certeza a identidade dos corpos estranhos que encontramos”, disse o pesquisador alemão.
As principais descobertas do estudo
De acordo com Marco Schade, paleontólogo líder do estudo, uma das descobertas mais surpreendentes é que o Irritator teria uma mordida comparativamente fraca em relação a outros dinossauros da época, mas excepcionalmente rápida.
“(…) Muitas mudanças anatômicas induzidas pela evolução explicam a aparência comparativamente bizarra desses dinossauros, que provavelmente eram especializados em capturar presas relativamente pequenas e ágeis”, explica Schade.
Além disso, a inclinação em 45° do focinho provavelmente foi um fator que facilitou um certo grau de visão tridimensional no campo de visão do animal.
A família do Irritator viveu em no período do Cretáceo, que se estendeu entre 145 e 65 milhões de anos atrás.
Da Bacia do Araripe à ‘Palaeontologia Electronica’
O Irritator provavelmente foi encontrado na Bacia do Araripe, localizada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, que contém fósseis de animais e plantas que viveram há 110 milhões de anos. Não há indicação precisa do ponto de onde ele foi extraído pelos contrabandistas e o museu alemão não realizou pesquisas sobre o tema.
Nas redes sociais, a comunidade paleontóloga brasileira demonstrou indignação com o fato de o novo estudo trazer apenas algumas referências genéricas sobre os conflitos envolvidos na origem da peça. As críticas envolvem não só os pesquisadores alemães e franceses, mas também a revista científica, que aceitou a publicação de um artigo com uma declaração de ética que é considerada “bastante frágil”.
No texto, os autores “reconhecem o estado possivelmente problemático” do fóssil, mas tentam argumentar que a compra foi feita antes das restrições de exportação do regulamento brasileiro de 1990, um argumento que especialistas dizem ser falso.
Questionado pelo g1 sobre a questão, o pesquisador Marcos Schade afirmou ser “incapaz de avaliar com firmeza” as críticas feitas.
“Nossa declaração de ética visava acrescentar algumas informações básicas sobre a história do espécime e todo o assunto, conforme entendemos os aspectos mencionados. Pode valer a pena mencionar que nossas considerações sobre este tópico complexo não são congruentes em todos os detalhes e as nuances de divergências são diversas; temos que refletir sobre algumas das críticas que nos são feitas, mas no momento não podemos dizer (se elas são corretas)”, justificou o pesquisador.
“Além disso, não somos profissionais do direito nem ocupamos posições cruciais, e outras avaliações, feitas por nós, de textos legais são irrelevantes para o assunto”, afirmou Schade.
Próximos passos
Allysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri (URCA), disse que existem várias tratativas em curso para reaver diversos fósseis brasileiros que estão espalhados em museus pelo mundo. No entanto, o processo é lento, burocrático e exige intervenção do Itamaraty.
Para o paleontólogo Juan Cisneros, o Brasil tem que lutar pela repatriação e devolução do fóssil ao Ceará, para fortalecer os centros locais e a ciência nacional.
“Se for repatriado, não tem que ir para algum museu em São Paulo ou Rio. É injusto para pessoas com tantos problemas sociais estarem em cima de uma riqueza tão grande e não usufruírem”, afirma Juan.
“Quando a gente cobra que esse fóssil deva ser repatriado, a gente está pedindo que simplesmente se respeite a lei”, finaliza o paleontólogo.
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